Leonor Assad
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que em agosto de 2024 foram registrados no Brasil 68.635 focos de queimadas, um aumento de 144% em relação a agosto do ano passado. E mais, todos os biomas apresentaram aumento nos focos de queimadas, sendo que 55,8% dos registros foram na Amazônia e 27,1% nos Cerrados. Considerando os estados, Mato Grosso registrou 14.617 focos, número seis vezes maior do que o registrado em 2023. Foi seguido pelo Pará com 13.803, Amazonas com 10.328, Mato Grosso do Sul com 4.648 e Rondônia com 4.522 focos.
No início de minha carreira de professora universitária, lembro-me de ter dado pelo menos uma aula de Pedologia afirmando que, dos fatores de formação do solo (material de origem, clima, organismos, relevo e tempo), o clima não podia ser modificado por ação do homem. Mas, como em 1988 cresciam as discussões sobre mudanças climáticas, ajustei minha abordagem e passei a apontar o risco que corríamos com os impactos no clima provocados por ações humanas. Cercada de céticos, eu era vista como uma alarmista.
Nessa mesma época, um colega, profundo conhecedor de Biodiversidade e Ecologia do Cerrado, dava aula prática no período chuvoso e fazia os alunos jogarem guimbas e cigarros acesos em uma pequena área de vegetação nativa para explicar a diferença entre fogo bom y fogo ruim. O fogo bom seria calmo, queimava pouco, não matava animais e plantas; seria aquele utilizado há milhares de anos por povos indígenas e comunidades tradicionais para limpeza de pequenas áreas, estímulo à rebrota e frutificação de plantas. O fogo bom exigia sabedoria na forma de utilização. Já o fogo ruim seria feito durante a estação seca, visando a limpeza de grandes áreas e causavam incêndios muitas vezes de difícil controle. Felizmente, nunca provocaram m único incêndio.
Fogo: um aliado antigo que está se tornando um inimigo implacável
Ainda que persistam controvérsias na comunidade científica, a evidência mais antiga do uso intencional de fogo pelo ancestral hominínio* do gênero Homo remonta há cerca de 1,7 milhão de anos. Charles Darwin, célebre por seus estudos sobre evolução dos seres vivos, considerava a descoberta do fogo como a mais importante da humanidade, depois da linguagem. E não estava exagerando. O fogo aquece em dias e noites frias; permite cozinhar alimentos, tornando-os mais palatáveis; favoreceu a dispersão dos humanos pelo planeta; permitiu a expansão da atividade humana nas horas escuras e mais frias da noite; e seu uso é disseminado nas mais variadas culturas e tradições, antigas a contemporâneas. E mais, foi através do fogo, com o desenvolvimento da máquina a vapor, que a humanidade deu um importante salto no desenvolvimento tecnológico, impulsionando máquinas e equipamentos que desempenhavam tarefas antes realizadas pela força de humanos.
Reconhecendo a importância do fogo, em 31 de julho deste ano, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.944, que institui a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, alterando as Leis 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal) e 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais). Esta Lei foi publicada no Diário Oficial da União no primeiro dia de agosto, mês que tradicionalmente mostra um aumento nos focos de queimadas no Brasil. E este ano não foi diferente.
Com efeito, levantamento do Monitor do Fogo, do MapBiomas, lançado no último dia 12 de setembro, aponta que agosto, com 5,65 milhões de hectares queimados, responde por quase metade (49%) da área queimada no Brasil desde janeiro deste ano. Em agosto de 2019, já havíamos visto uma série de incêndios criminosos, quando ruralistas combinaram atear fogo na Amazônia a partir da BR-163, entre os dias 10 e 11, no que ficou conhecido como “Dia do Fogo”. Três anos depois, mais da metade da floresta queimada na Amazônia virou pasto. Mas as duas investigações instauradas em nível federal foram arquivadas no primeiro semestre deste ano, sem que ninguém tenha sido indiciado, denunciado ou julgado pelo episódio.
Existiriam outros fatores influenciando a escalada de queimadas em todo país?
Desde o início de minha carreira, muita coisa se passou: a AIDS se alastrou pelo mundo; o Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor no Brasil; o Mercosul foi estabelecido com a assinatura do Tratado de Assunção; o Brasil vivenciou vários escândalos de corrupção; a rainha Elizabeth morreu em 2022, depois de 70 anos de reinado; e os impactos das ações do homem no ambiente aumentaram, assim como as controvérsias a respeito do tema.
O tempo passou, os sucessivos relatórios do IPCC foram aceitos por uns e questionados por outros, mas as mudanças climáticas tornaram-se cada vez mais evidentes: derretimento das calotas polares e de áreas glaciais; aumento da temperatura média global; aumento da frequência de eventos extremos como furacões, ondas de calor, incêndios florestais, secas e inundações; e elevação do nível do mar, entre outros.
Especialmente este ano, o Brasil vive uma seca que ainda não tinha sido vista na história recente: as estações parecem alteradas, pois as temperaturas em setembro estão até 4°C acima da média histórica; Sorocaba e Campinas registram calor recorde, com temperaturas no inverno superiores a 35°C; e dos dez principais rios do país, cinco (Madeira, Purus, Juruá, Negro e Xingu) encontram-se em situação crítica, um (rio Paraná) está em situação severa a moderada, e os demais (Amazonas, São Francisco, Tocantins e Araguaia) encontram-se abaixo do nível médio. A crise hídrica compromete o abastecimento de água e a geração de energia. A previsão dos especialistas é de atraso da estação chuvosa, chuvas abaixo da média e temperaturas elevadas, que aumentam a evaporação e acentuam a seca.
Nossos sistemas de produção, principalmente na agricultura, e de geração de energia precisam mudar. A água, antes abundante, precisa ser utilizada com parcimônia. Temos que nos adaptar às mudanças no clima que afetam a disponibilidade de recursos hídricos e provocam tanto aumento de temperaturas quanto a amplitude térmica entre temperaturas diurnas e noturnas, que causam sérios riscos à saúde.
Ou seja, o banho não pode mais durar meia hora; varrer calçada com água jorrando de mangueira, comum em bairros de alto padrão no Sudeste brasileiro, é prática abusiva no consumo de água; torneiras pingando e vazamentos devem ser consertados; piscinas devem ser cobertas quando não utilizadas; o reuso de água (geralmente efluentes pós-tratados) deve ser adotado em atividades que não exigem água potável, como irrigação de jardins, lavagem de veículos e ruas, descarga de vasos sanitários e sistemas de ar-condicionado; a água utilizada na máquina de lavar roupa pode ser reaproveitada para limpar pisos e quintal. Precisamos também aproveitar a água da chuva.
Temos que evitar o desperdício e adotar mecanismos de economia circular. Temos que reduzir o desperdício e maximizar o uso de recursos naturais disponíveis; e manter produtos e materiais em ciclos de uso contínuo, por meio da partilha, do aluguel, da reutilização, da reparação, da renovação e da reciclagem. Fazendo isto, contribuiremos para minimizar o impacto das mudanças do clima em nosso dia a dia.
E, principalmente, não podemos usar o fogo e queimadas a céu aberto para limpeza de áreas agrícolas e queima de lixo. Porque, com as mudanças climáticas, qualquer fagulha pode causar incêndio descontrolado.
Ou seja, não existe mais fogo bom!
Hominínios são os humanos atuais e todas as espécies da nossa árvore evolutiva, ou seja, quando nos referimos aos Australopitecos, aos Homo erectus ou aos Neandertais, utilizamos o termo Hominínio.