Calor pode matar, mas de forma socialmente desigual

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O verão no Hemisfério Sul terminou em 20 de março passado quando começou o outono, estação marcada por temperaturas mais agradáveis, nem tão quente quanto o verão que a precede e nem tão fria quanto o inverno que a sucede. Não é à toa que Monteiro Lobato, que nasceu em 18 de abril, considerava este o melhor mês do ano: “não faz frio nem calor, não é mês das águas nem de seca – tudo na medida certa”. Mas nosso grande escritor nasceu no final do século XIX e morreu em 1948, quando as mudanças no clima ainda não eram evidentes.

Somente nos anos 1980, evidências científicas relacionando mudança do clima global às emissões de gases de efeito estufa provenientes das atividades humanas começaram a despertar a preocupação pública. A Assembleia Geral das Nações Unidas respondeu a esses apelos estabelecendo em 1990 o Comitê Intergovernamental de Negociação para a Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima. E na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992 – a Rio 92 – representantes de 179 países elaboraram uma agenda global para minimizar os problemas ambientais mundiais. Crescia a ideia do desenvolvimento sustentável, buscando um modelo de crescimento econômico e social aliado à preservação ambiental e ao equilíbrio climático em todo o planeta.

Mas como o equilíbrio entre progresso da sociedade, conservação do ambiente e desenvolvimento da economia não foram muito além de discursos e documentos,  as consequências das mudanças de temperatura no planeta já estão sendo medidas e  sentidas. As estações do ano, como as conhecemos estão mudando em todo o mundo e os efeitos das mudanças no clima não atingem todos da mesma forma.

Mudanças no clima e desigualdades socioeconômicas

Monteiro dos Santos et al., em artículo publicado este ano na Plos One, apontam que à medida que as mudanças climáticas avançam, as ondas de calor estão se tornando mais longas, mais frequentes e com altas temperaturas em várias regiões do mundo e que no Brasil estão exacerbando desigualdades socioeconômicas. Os autores indicam que grupos sociais como mulheres, idosos, pessoas pretas, pardas ou com menores níveis educacionais apresentam os maiores riscos. Em recente entrevista ao jornal Estado de São Paulo, a Professora Renata Libonati, uma das autoras do artigo, destacou que ondas de calor matam mais do que chuva e deslizamento. Isto porque apesar de as ondas terem um impacto na saúde pública, através de mortes e aumento de internações, esse impacto é algo invisível, não se percebe que essas mortes estão associadas às ondas de calor; é um desastre que mata muito mais que outros, mas não é tratado como desastre por não serem identificadas a esses eventos.

E mais, durante a 351ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS), realizada nos dias 21 e 22 de fevereiro deste ano, Agnes Soares da Silva, diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DSAST), destacou que “esse senso comum de que as mudanças climáticas atingem a todos de forma igual é uma falácia, por isso colocamos a questão da equidade étnico racial como tema central.” E acrescentou que “a situação vai piorar se não fizermos intervenções que ajudem a reduzir esta vulnerabilidade que são riscos adicionais”

Estudos indicam que 277 doenças podem ser agravadas pelos riscos climáticos, impulsionados pelas emissões contínuas de gases de efeito estufa. Fonte: https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/3329-injustica-ambiental-e-racismo -a-urgencia-de-uma-abordagem-equitativa

Texto do Instituto Pólis de julho de 2022 aponta que a injustiça socioambiental é caracterizada quando os danos ao meio ambiente produzem impactos desiguais que sobrecarregam desproporcionalmente pessoas de baixa renda, populações marginalizadas, grupos minoritários e vulnerabilizados, conforme apontam Robert Bullard (2004)1 e a Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Já o racismo ambiental, termo cunhado pelo Reverendo Benjamin Chavis, da United Church of Christ (UCC) na década de 1980, exprime o fenômeno pelo qual muitas das políticas públicas ambientais acabam afetando e prejudicando de modo desigual, intencionalmente ou não, indivíduos e comunidades de cor que se concentram em bairros e territórios periféricos, onde vivem famílias mais pobres e onde há maior concentração de pessoas negras, indígenas e quilombolas (Bullard, 2004). São também nessas áreas que se concentram os piores índices de poluição do ar e das águas, assim como maior incidência de riscos de inundações e deslizamentos (para citar alguns exemplos), expondo essa população vulnerabilizada aos perigos de desastres naturais e a piores condições de saúde. Complementa-se ao conceito de racismo ambiental a não presença da população negra na elaboração das políticas e nas lideranças de movimentos ecológicos, bem como a discriminação da aplicação das leis em territórios racializados (Instituto Pólis, 2022).

Justiça ambiental

Os impactos das mudanças climáticas não são iguais para todos e a maior parcela da responsabilidade pelo problema está concentrada em poucos países, empresas e pessoas. No mundo, 70% das emissões de gases de efeito estufa provêm de apenas 10 países, incluindo o Brasil, impactando os demais 183. Ainda que o artigo 225 da Constituição Federal do Brasil2 aponte que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, estamos ainda longe de garantir justiça ambiental para todos. Mulheres, pessoas pobres, idosos, pessoas negras3, indígenas, quilombolas ou com menores níveis educacionais têm maior risco de sofrer com as altas temperaturas.

Periferias são as mais afetadas por mudanças climáticas.
Fonte: https://www.metropoles.com/brasil/meio-ambiente-brasil/mudancas-climaticas-periferias-sao-as-mais-afetadas-em-epocas-de-chuva

Leonel Júnior e Gonçalves (2023) apontam que “os impactos e riscos ambientais decorrentes da exploração dos recursos naturais e da degradação da natureza não afetam de forma equitativa a todos os indivíduos, evidenciando que determinados grupos estão mais expostos a essas situações em que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se encontra fragilizado. Eles tampouco têm o mesmo acesso, direto e/ou indireto aos recursos ambientais do país. A justiça ambiental, enquanto corrente teórica, traça esse diagnóstico evidenciando que na distribuição dos problemas ambientais não existe um caráter aleatório. [Leonel Júnior e Gonçalves (2023), p. 3-4].”

Indígenas, atingidos por barragens, seringueiros, quilombolas, faxinalenses, quebradeiras de coco babaçu e tantos outros povos estão em situação de desigualdade ambiental. E como apontam Leonel Júnior e Gonçalves (2023), não é por acaso. São frutos de um processo histórico de dominação responsável pela exclusão dos mesmos; e são sistematicamente afetados pelos impactos e riscos ambientais, causados pela racionalidade moderna que dominou e se apropriou da natureza (Leonel Júnior e Gonçalves, 2023).

O Brasil se caracteriza por ser um país de grande desigualdade social, no qual grande parcela da população vive em condições de pobreza. Aqui, tanto a injustiça social quanto a discriminação de grupos da população são expostos de forma desigual à poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento (Rammê, 2012).  

Ou seja, não existe justiça ambiental sem a garantia de coexistência do desenvolvimento econômico com o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e assegurado a todos.

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1- BULLARD, R. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. In: Acselrad, H.; Herculano, S.; Pádua, J. A. (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará , 2004. p. 41-68.

2- O artigo 225 da Constituição Federal do Brasil estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

3- O Estatuto da Igualdade Racial Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, considera que a população negra é o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga.

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