Autoras: Alice Wassall e Leonor Assad
A escravidão no Brasil começou nos primeiros anos do século XVI, quando os portugueses chegaram ao território recém-descoberto e teoricamente terminou em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea (Lei n.º 3.353)*, que segundo o Arquivo Nacional talvez seja o mais breve ato legal famoso da história do Brasil. Portanto, este mês essa Lei está completando 135 anos.
Mas, infelizmente, não há muito o que comemorar. O trabalho escravo persiste no Brasil, agora com o eufemismo de trabalho análogo à escravidão.
De acordo com o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, 57.772 pessoas em condição análoga à de escravo foram resgatadas de 1995 a 2022, uma média de 2.063,3 resgatados por ano. os setores do agronegócio, da construção civil, da moda e do serviço doméstico são os que mais exploram o trabalho escravo moderno. E mais, dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontam que este ano já foram resgatadas 1.201 pessoas em condições semelhantes à de escravidão, uma alta de 140% em relação ao mesmo período de 2022 e um recorde nos últimos 15 anos. Exemplos não faltam: em 27 de janeiro deste ano, em Bento Gonçalves (RS), após denúncia de dois trabalhadores que conseguiram fugir, o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) resgatou 207 homens que trabalhavam em condição análoga à escravidão na colheita de uva de vinícolas famosas da região; três dias depois, o MPT resgatou em uma fazenda de Pirangi (SP), fornecedora de cana-de-açúcar para a Usina Colombo, 32 trabalhadores em condições análogas à escravidão; em 07 de março, num sítio em São José do Herval (RS), foi resgatado um homem analfabeto, de 59 anos, que trabalhava como caseiro (com tornozeleira eletrônica enquanto cumpria uma pena); em 10 de março, 82 trabalhadores em duas fazendas de arroz no interior de Uruguaiana, dentre os quais 11 adolescentes com idades entre 14 e 17 anos; ação fiscal do MTE realizada em 2 de maio último, retirou 15 trabalhadores em condições degradantes em colheitas de maçãs na área rural de Ubirici/SC; há três dias, em 10 de maio, o MTE libertou um homem de 74 anos que trabalhava há cerca de um ano e meio, sem folga, sem férias e sem salário, para quitar dívidas contraídas no mercado do patrão. Entre as muitas irregularidades, constatam-se alojamentos inapropriados, fornecimento de água sem condições para o consumo humano, jornada exaustiva, falta de treinamento e de fornecimento de equipamentos de proteção individual, e a restrição de locomoção do trabalhador.
Como aponta Lilia Moritz Schwarcz em Sobre o autoritarismo brasileiro, o racismo continua plenamente atuante e age perversamente no silêncio e na conivência do dia a dia. E acrescenta: “a escravidão nos legou uma sociedade autoritária, a qual tratamos de reproduzir em termos modernos… que lida muito mal com a ideia da igualdade na divisão de deveres (mas) e dos direitos também”. Ou seja, a escravidão reflete nossa formação histórica, revela práticas que ferem a legislação trabalhista em vigor no país e expõe homens e mulheres a graves riscos, reforçando a condição de vulnerabilidade e desigualdade social da população mais pobre e fragilizada.
Em entrevista para a Revista Fórum, o auditor-fiscal do trabalho Renato Bignami apontou que a rigor nenhum setor econômico brasileiro está inteiramente livre de ocorrência de condições análogas às de escravo; mas, historicamente, alguns se destacam como atividades rurais na pecuária, setor sucro-alcoleiro, nas culturas de fumo, cacau, sisal e café, e no extrativismo (principalmente carnaúba, carvão vegetal, atividades de reflorestamento), e nas áreas urbanas a indústria da moda, a construção civil, hotelaria/restaurantes, e mais recentemente, o trabalho doméstico. Bignami destaca que o trabalho doméstico tem se revelado um setor particularmente vulnerável a casos graves de violações de direitos fundamentais do trabalhador, com vários registros de resgates de trabalhadoras de residências em que vinham sendo maltratadas e sonegadas nos seus direitos mais básicos e elementares.
Dados do programa educacional Escravo, nem pensar! da ONG Repórter Brasil apontam que no Brasil 95% das pessoas submetidas ao trabalho escravo são homens e jovens porque, geralmente, as atividades para as quais esse tipo de mão de obra é utilizado exigem força física. A Escravo, nem pensar! aponta que:
– apesar de representarem somente 5% dos resgatados na média nacional, as mulheres são parcela significativa do total em alguns setores, como no setor têxtil em São Paulo e no trabalho doméstico e sexual;
– dos trabalhadores libertados, 68% são analfabetos ou não concluíram nem o 5º ano do Ensino Fundamental; mais da metade (58%) é negro, dos quais 45% pardos e 13% pretos.
Cabe destacar que na época já havia um movimento de libertação pelos próprios escravos, com as lutas dos quilombos por liberdade e a Abolição no Brasil não trouxe nenhuma reparação pelos quase 300 anos de escravidão.
A 2ª edição do estudo Desigualdades por cor e raça, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgado em novembro de 2022, aponta que os programas de transferência de renda não foram capazes de reverter as históricas desigualdades que mantém populações preta, parda e indígena em maior vulnerabilidade socioeconômica do que a população branca.
O levantamento, com base em dados de 2021, aponta que o rendimento médio mensal do trabalho dos brancos foi de R$ 3.099,00 enquanto os pretos receberam R$ 1.764,00 e os pardos, R$ 1.814,00. Mesmo entre os que têm igual nível de escolaridade, persistem as distorções. Em 2021, entre os trabalhadores com ensino superior completo, os brancos ganharam em média R$ 34,4 por hora, os pretos receberam R$ 22,9 (66,6% do que foi pago aos brancos) e os pardos, R$ 24,8% (72% do que foi recebido por trabalhadores brancos). E mais, ocupar 53,8% dos postos de trabalho não garantiu o mesmo percentual de cargos de gerência para pretos e pardos; em 2021, eles estavam em apenas 29,5% dos cargos de gerência, contra 69% dos cargos ocupados por brancos. No setor agropecuário os números são ainda mais díspares: 79,1% dos estabelecimentos com mais de 10 mil hectares têm brancos por proprietários enquanto negros (que inclui pretos e pardos) possuem apenas 19% dos estabelecimentos com mais de 10 mil hectares.
A desigualdade no Brasil é marcada pelo racismo estrutural, que conforme aponta o Prof. Silvio Almeida (e atual Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania), o preconceito e a discriminação racial que se encontram consolidados na organização da sociedade, privilegiando determinada raça ou etnia em detrimento de outra. Políticas públicas de igualdade (como a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, instituída por meio do Decreto nº 4.886/2003), ações afirmativas (como a lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas para ingresso no ensino superior), são ações importantes. Mas superar o racismo estrutural é também responsabilidade de empresas e organizações, que em uma das camadas desta questão podem adotar práticas de inclusão e diversidade de colaboradores, clientes, fornecedores.
Os casos listados aqui inicialmente provam que as empresas precisam sim zelar pela sua credibilidade e imagem de mercado fazendo uma análise rigorosa de compliance com seus prestadores de serviço, pois exigir documentos e contratos se mostram insuficientes. Aqueles que se preocupam com a sustentabilidade corporativa e questões de governança podem fazer mais para que as manchetes de jornais não tragam mais notícias vergonhosas que mancham a história das próprias empresas. Pensar em estratégias de ESG pode ser também uma forma da iniciativa privada fazer sua retratação com a desigualdade social brasileira.
*O dia 13 de maio é um dia de celebração de avanço da sociedade, mas também é um dia para se refletir como lidamos com questões raciais no Brasil. Pensando nisso, sugerimos aqui o Podcast Projeto Querino que em oito episódios conta a verdadeira história da escravidão em território brasileiro. Para saber mais sobre esse projeto, pode acessar também: https://projetoquerino.com.br/