No último dia 16 de janeiro, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que cria um marco regulatório para a promoção da agroecologia no País. Tramitando na Câmara desde 2019, o projeto é de autoria do deputado Pedro Uczai (PT/SC) e tem por objetivo incentivar ações em agricultura sustentável que utilizem tecnologias limpas e integradas ao ecossistema. Trata-se de um avanço importante ainda que o relator do projeto, deputado Nilto Tatto (PT-SP), tenha proposto a substituição do “selo agroflorestal”, da proposta original, pelo “Sistema de Identificação e Valorização de Sistemas Agroflorestais de Base Agroecológica”, que credita produtores no mercado e, ainda, habilita a produção e comercialização de madeira de espécies nativas e ameaçadas de extinção. O PL ainda deverá ser analisado pelas comissões de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Ainda assim, esta aprovação constitui um marco importante, pois pode trazer benefícios para pequenos produtores agrícolas e para consumidores.
O Brasil é considerado um dos maiores produtores agrícolas do mundo. O primeiro levantamento da safra 2023/24, realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), aponta que a safra brasileira de grãos poderá chegar a 317,5 milhões de toneladas. Foram observados aumentos das áreas plantadas e das produtividades médias de arroz e feijão, mas diminuição nas de milho. Para a soja, principal grão cultivado no país, as estimativas são de crescimento tanto na área como na produtividade, mas em uma velocidade menor que o registrado no último ano-safra (Conab, 2023).
Entretanto, um relatório da ONU abrangendo o período de 2020 a 2022 aponta que cerca de 21,1 milhões de pessoas no Brasil estavam em situação de insegurança alimentar[1] grave naquele período. O Governo atual aponta que, mudanças nas políticas sociais introduzidas a partir de 2023, permitiram que 18,52 milhões de famílias saíssem da linha da pobreza em junho passado.
Mas por que nas cidades temos tantos pedintes com fome? Por que um país de dimensões continentais como o Brasil e com uma produção agrícola tão significativa ainda possui um contingente de pessoas que passam fome?
Produção agrícola e produção de alimentos
Denomina-se setor primário aquele que é responsável pelas atividades econômicas relacionadas com a produção de matérias-primas, que envolve a agricultura, a pecuária e o extrativismo vegetal, animal e mineral. A agricultura e a pecuária, geralmente designadas por agropecuária, têm grande importância estratégica visto que são as principais responsáveis pela produção de alimentos. A atividade agropecuária envolve um conjunto diversificado de produtos que possuem diferentes finalidades, como consumo in natura, materias-primas para a indústria alimentícia, têxtil (produção de algodão, seda, linho e rami, que também é uma excelente forrageira), farmacêutica, de cosméticos, moveleira por meio de cultivo de árvores (silvicultura), de produtos químicos, de biocombustíveis, entre outras.
Por outro lado, alimento é toda substância utilizada pelos seres vivos como fonte de matéria e energia para realizar suas funções vitais. Ou seja, nem tudo que é produzido na agricultura é considerado alimento e nem tudo que é alimento para seres humanos provém diretamente da agropecuária, visto que muitos produtos são processados industrialmente. Madeira para móveis, substâncias químicas usadas em medicamentos, etanol e biodiesel são exemplos de produtos gerados pelo setor primário.
Os diferentes grupos de alimentos consumidos pelos seres humanos (frutas, hortaliças, leite e derivados etc.) podem ser consumidos in natura ou a partir de processamento industrial. Estima-se que existam cerca de 400 mil espécies de plantas na Terra e que mais de 300 mil podem ser consumidas para tornar a dieta mais rica em nutrientes. Entretanto, apenas 200 delas são aproveitadas. E mais, dados da FAO apontam que cerca de 75% das calorias na alimentação humana vêm de apenas 12 culturas (arroz, trigo, cana-de-açúcar, milho, soja, batata, palma para fabricação de óleo, mandioca, sorgo, milheto, amendoim e batata-doce) e de cinco grupos de animais (bovinos, galinha, búfalo, porco e cabra). Do mesmo modo, a produção agrícola pode se dar de diferentes formas: agricultura extensiva, agricultura intensiva, agricultura familiar, agricultura patronal, agricultura orgânica, permacultura, entre outras.
Segundo a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), o Brasil é o líder mundial na produção e exportação de gêneros alimentícios. Conceitualmente, gênero alimentício, ou seja, alimento para o consumo humano, é qualquer substância ou produto, não transformado, parcialmente transformado ou transformado, destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser. Mas, conforme a SNA e a FAO, no Brasil se desperdiça boa parte da produção de alimentos, sendo que os itens mais desperdiçados são frutas, hortaliças e tubérculos. E são várias as causas desse desperdício: hábitos de consumo, que muitas vezes exigem produtos in natura perfeitos; ausência ou inadequação de embalagem do alimento; regulamentos e padrões sobre requisitos estéticos para comercialização de frutas e vegetais; ausência de políticas governamentais para reduzir o desperdício de alimentos; e ausência de diretrizes para redistribuir o excedente de alimentos seguros para os necessitados, por meio de bancos de alimentos.
Dados do Censo Agropecuário de 2017 apontam que o Brasil contava com 5.073.324 estabelecimentos agropecuários, que ocupavam 351,289 milhões de ha, ou seja, cerca de 41% da área total do país. E mais, do total de estabelecimentos agropecuários, 77% (3.897.408) foram classificados como de agricultura familiar, ocupando uma área de 80,89 milhões de hectares (23% da área total) e 10,1 milhões de pessoas, respondendo por 23% do valor da produção e ocupando 67% do total de trabalhadores.
As professoras Maria Sylvia Macchione Saes e Sílvia Helena Galvão de Miranda ressaltam em artigo no Jornal da USP que a definição de Agricultura Familiar (Lei nº 11.326/2006) para fins de definição de políticas públicas não é funcional do ponto de vista de recorte tecnológico e de acesso ao mercado:
Os dados mostram que muitos produtos da cesta básica são produzidos pelas unidades consideradas do agronegócio, assim como pela agricultura familiar de alta tecnologia e produtividade. A maioria dos produtores familiares está inserida em canais de comercialização formais, via associações e cooperativas, que também atingem os mercados externos … Isto não significa que não há também produtores familiares com baixa tecnologia, dificuldade de acesso a recursos financeiros e, portanto, com restrições para produção mesmo para autoconsumo.”
As autoras apontam que a fome no Brasil em geral é associada à falta de alimentos e/ou ao deslocamento da produção de alimentos para exportação de produtos agrícolas e destacam que “as questões relacionadas à renda limitam a segurança alimentar de grande parcela da população”.
Mas é importante ressaltar que, num país de dimensões continentais como o Brasil, existem grandes diferenças regionais nos perfis de pequenos, médios e grandes produtores, na produção agrícola (que é dependente de condições climáticas), bem como diferenças na renda, na escolaridade e no acesso à crédito de pequenos agricultores. Com efeito, Souza et al. (2019), avaliando a utilização das principais tecnologias pela agricultura familiar brasileira por meio de 59 indicadores de uso de diversas tecnologias, para cada mesorregião geográfica, constataram que há grandes diferenças regionais quanto ao uso de tecnologia na agricultura familiar, com os maiores índices de utilização de tecnologia concentrando-se nas regiões Sul e Sudeste (particularmente em São Paulo). Segundo os autores, na região Centro-Oeste – com exceção do Distrito Federal – predominam índices médios, enquanto que nas regiões Norte e Nordeste, em geral, prevalecem índices baixos ou muito baixos de utilização de tecnologia. Fatores como tamanho da terra, mão de obra e recursos financeiros disponíveis, infraestrutura regional para escoamento de produção e acesso à energia elétrica e combustível, condicionam o tipo de tecnologia adotada na agricultura familiar nas diversas regiões brasileiras.
Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil apontam que em 2022, 33,1 milhões de pessoas não tinham o que comer, indicando que mais da metade (58,7%) da população brasileira convivia com a insegurança alimentar em algum grau (leve, moderado ou grave de fome), regredindo-se para um patamar equivalente ao da década de 1990. Por outro lado, o agronegócio foi responsável por 49% da das exportações brasileiras, alcançando US$166,55 bilhões, com novo recorde em 2023, 4,8% superior a 2022. Complexo soja (40,4% do total exportado), carnes (14,1%), complexo sucroalcooleiro (10,4%), cereais, farinhas e preparações (9,3%) e produtos florestais (8,6%) foram os cinco principais setores em valor exportado, representando 82,9% das vendas do setor em 2023. Entretanto, a fome de mais de 33 milhões não pode ser saciada com as commodities brasileiras, que são produtos processados e se tornam novos produtos nos territórios de destino.
O papel de pequenos produtores rurais na produção de alimentos
Num país de dimensões continentais e com grande produção agrícola é altamente contraditório que pessoas passem fome. Mas infelizmente, em 2022, o Brasil retornou ao Mapa da Fome, com 33 milhões de pessoas passando fome como consequência de “um governo que negava a existência do problema”. Um país entra no Mapa da Fome da ONU quando mais de 2,5% da população enfrenta falta crônica de alimentos. E fome e renda estão intimamente relacionadas. Ainda que existam políticas públicas para garantia de renda mínima (Bolsa Família, Renda Mínima, Política de Preços Mínimos ao produtor agrícola), é importante que a renda seja proveniente do trabalho remunerado. A educação e o grau de escolaridade são fatores determinantes na renda proveniente do trabalho e trabalhadores com maiores níveis educacionais possuem de modo geral renda mais alta do que os de baixa escolaridade, ainda que transformações trazidas pela internet gerem distorções.
Em artigo de opinião publicado em março de 2020, Jacyr Costa Filho, presidente do Conselho Superior do Agronegócio (Cosag) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), afirmou que dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) de 2019 mostravam que as oportunidades de emprego no país estavam na indústria (com saldo positivo de mais de 95 mil postos) e no segmento agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura (com mais de 61 mil postos). Segundo Costa Filho, esses dados apontam que as oportunidades de emprego e desenvolvimento do nosso país estão na indústria e no agronegócio.
Entretanto, um studio do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV Agro), de outubro de 2023, baseado em dados Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), aponta que o mercado de trabalho do agro (agropecuária e agroindústria) está menor em 2023 do que em 2016, pois foram perdidos 558 mil postos de trabalho, ou seja, uma contração de 3,9%. E mais, a agricultura perdeu 583,3 mil ocupações (-9,7%) e a pecuária 306 mil postos de trabalho (-9,5%); por outro lado, em termos de produção, a agricultura acumulou um aumento de 34,1% na produção de grãos entre os ciclos 2016/2017 e 2022/2023, e o valor bruto da produção da pecuária aumentou 14,6% no mesmo período. Além disso, o mesmo estudo aponta que o mercado de trabalho do agro ficou mais formal, enquanto no mercado de trabalho nacional aumentou a informalidade.
E mais, o estudo do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) Quem são os trabalhadores por conta própria da agropecuária brasileira? , de julho de 2023, aponta que pouco mais de dois terços do total de trabalhadores do mercado de trabalho da agropecuária atuam por conta própria e de forma independente como alternativa ao desemprego e, provavelmente, destinam parte de sua produção para o próprio consumo e de seus familiares. Muitos desses trabalhadores adotam sistemas de produção adaptados às limitações do meio, isto é, usam pouco ou nenhum adubo; usam pouco ou nenhum defensivo agrícola; na maioria das vezes não usam irrigação e, quando usam, o aporte de água na cultura se dá na maioria das vezes de forma empírica. Na falta de adubo industrializado, muitos pequenos agricultores fazem uso de adubo orgânico, produzidos na propriedade por meio de compostagem de resíduos orgânicos do local de produção, o que é considerado uma prática eficiente.
Ou seja, o agronegócio brasileiro produz principalmente para o mercado externo, para empresas atacadistas, para grandes redes de supermercados e para as agroindústrias. A pequena agricultura, por outro lado, produz para o consumo próprio, e, quando há excedente, este é comercializado principalmente próximo ao local de produção, em feiras, quitandas e em entregas porta a porta.
Os pequenos produtores rurais utilizam principalmente mão de obra da família e, quando necessário, contratam alguns poucos empregados. Em geral, a pequena agricultura opera em propriedades com dimensões entre um e quatro módulos fiscais, nos quais produzem frutas, verduras e produtos derivados de pequenos animais (galinha, porco, cabrito, carneiro) ou de rebanhos de poucas cabeças, cuja produção (leite, carne e ovos) está integrada a agroindústrias locais. Os agricultores de assentamentos de reforma agrária também são de base familiar.
Atualmente, observa-se o crescimento da adoção de sistemas de produção agroecológicos em pequenas e médias propriedades com mão de obra familiar. Um princípio importante da Agroecologia é que o desenvolvimento da agricultura de uma comunidade, de um território ou de um país deve ser pensado como um todo, levando em conta as questões sociais, culturais, ambientais e econômicas. Ou seja, não adianta avançar nos processos produtivos sem repensar a estrutura fundiária, o acesso a tecnologias alternativas, o alimento como direito social, empregos dignos, saúde plena e o respeito a todas as formas de vida.
Renato Linhares de Assis e Ademar Ribeiro Romeiro apontam em Artigo na Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente que a Agroecologia surgiu na década de 1970 visando dar suporte teórico para diferentes correntes de agricultura alternativa que vinham se desenvolvendo desde a década de 1920, em contraponto ao uso abusivo de insumos agrícolas industrializados. Os autores apontam que a Agroecologia busca compreender o funcionamento e a natureza da unidade de produção agrícola, integrando princípios ecológicos, agronômicos e socioeconômicos, para compreender e avaliar o efeito das tecnologias sobre os sistemas agrícolas e a sociedade como um todo. E destacam que o sucesso de sistemas agroecológicos está em recuperar e ou manter o solo em suas características físicas e químicas e sua biota que é fortemente influenciada pelas práticas agrícolas empregadas.
Os sistemas agroecológicos são uma alternativa para a produção agrícola de alimentos saudáveis. Face aos inúmeros impactos ambientais observados tanto em função do modelo de produção agrícola adotado, quanto em função de mudanças no clima, esses sistemas de produção são ambientalmente adaptados, socialmente justos e economicamente acessíveis. E por serem principalmente sistemas de produção agrícola de base familiar, contribuem para diminuir a vulnerabilidade social e econômica de populações que se aglomeram na periferia de grandes e médias cidades.
[1] De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a insegurança alimentar ocorre quando não se tem acesso regular a alimentos seguros e nutritivos suficientes para um crescimento e desenvolvimento normais e uma vida ativa e saudável. Isto pode ser devido à indisponibilidade de alimentos e/ou à falta de recursos para obter alimentos. A insegurança alimentar pode ocorrer em diferentes níveis de gravidade (moderada, grave, crônica e aguda).