Ocupações em área de risco + mudança climática – uma equação fatal

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Alice Wassall, Eduardo Assad, Giuliano Wassall e Leonor Assad

No dia 19 de fevereiro de 2023 o Brasil amanheceu como na canção de Milton Nascimento: 

Coração americano / Acordei de um sonho estranho / Um gosto, vidro e corte / Um sabor de chocolate / No corpo e na cidade / Um sabor de vida e morte.

Era um domingo de Carnaval.

Enquanto na cidade de São Paulo muitos foliões voltavam cansados de dançar e festejar o primeiro carnaval pós pandemia da Covid-19, no Litoral Norte do Estado o nascer do sol escancarou as consequências das fortes chuvas que caíram na madrugada.

Entre sábado e domingo, chuvas intensas em Caraguatatuba, Ilhabela, São Sebastião e Ubatuba destruíram casas e encostas; interditaram a rodovia Rio-Santos (BR-101), além de muitas ruas e ruelas; arrastaram carros e lama; provocaram alagamentos, queda de árvores e falta de luz; desabrigaram ou desalojaram milhares de pessoas; e causaram dezenas de mortes. Chuvas intensas também causaram estragos em Bertioga, Santos, São Vicente e Praia Grande, no Litoral Central de São Paulo. Até esta segunda (27), foram registradas 65 mortes, vítimas da omissão, que segundo Edu Lyra da ONG Gerando Falcões, que pode ser tão destrutiva quanto a intenção de matar.

Rastro de destruição causado pelas fortes chuvas no bairro do Itatinga, região central de São Sebastião – Baltazar/Futura Press/Folhapress

Historicamente, no mês de fevereiro, chove em média 300 mm no litoral de São Paulo. Entretanto, dados do Cemaden – Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais apontam que as chuvas que caíram entre sábado e domingo no Litoral Norte de São Paulo foram as maiores já registradas em 24 horas na história do Brasil. Foram 683 mm em Bertioga, 627 mm em São Sebastião, 337 mm em Ilhabela, 335 mm em Ubatuba, 234 mm em Caraguatatuba, 232 mm em Santos, 209 mm em Praia Grande e 194 mm em São Vicente. São, portanto, eventos extremos. De acordo com o climatologista Carlos Nobre temos que estar preparados pois os eventos extremos irão se repetir.

Foi uma combinação de fatores que causaram a tragédia no Litoral Norte:

– A superfície quente do oceano em razão do aumento de temperatura;
– Uma frente fria vinda do Sul; um sistema de baixa pressão;
– Ventos;
– O bloqueio da Serra do Mar à passagem de nuvens carregadas;
– Os declives acentuados do relevo local propícios a escorregamentos;
– E as construções na Vila do Sahy, uma ocupação irregular com mais de 640 imóveis, em área de preservação ambiental e classificada como zona com alto risco de deslizamento, o que era de conhecimento da Prefeitura de São Sebastião.

A tragédia em Barra do Sahy escancara mais uma das desigualdades brasileiras: o racismo ambiental.

Casas de alto padrão, com valor médio de cerca de R$ 2 milhões – ou mais, se estiver perto da areia – foram construídas com paredes sólidas e muitas vezes sobre lajes de pedra em dois morros situados entre a estrada e a praia próxima.  A Vila do Sahy fica do outro lado da BR 101 e é ocupada por trabalhadores de baixa renda, empregados de casas alto padrão e de hotéis da região.

No Brasil existem muitas áreas de risco, como a Vila do Sahy.

Um estudo desenvolvido pelo Cemaden, em parceria com o IBGE e com base no censo de 2010, apontou que o Brasil possuía quase 28 mil áreas de risco em 825 municípios. Como a população e as desigualdades aumentaram – o que está sendo avaliado no Censo de 2022/2023 – esse número deve ser bem maior. Em novembro de 2020, uma vistoria do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) indicou risco de deslizamento na Vila Sahy e apontou que a ocupação dos morros era uma tragédia anunciada.

O Brasil detém conhecimento científico sobre práticas de adaptação às mudanças climáticas, desde 2016 conta com o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), elaborado pelo governo federal em colaboração com a sociedade civil, setor privado e governos estaduais. Em entrevista ao UOL Notícias, a Ministra do Meio Ambiente Marina Silva disse que é necessário levar a sério os dados do Cemaden e que é preciso mudar protocolos de construção e de planos diretores das cidades para que se incorpore as mudanças climáticas que estão em escala irreversível. E acrescenta:

“A cada um real investido para prevenir, gastamos cem reais para reconstruir”

Ou seja, insistir no atual modelo de desenvolvimento econômico e expansão das cidades é improdutivo para a sociedade, sem levar em conta as vidas interrompidas que são impossíveis de mensurar a perda.

Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, e Sergio Margulis, economista-chefe do movimento “Convergência pelo Brasil”, apontam, em artigo publicado na Revista Piauí,  que nenhuma cidade brasileira está preparada para enfrentar chuvas como as que ocorreram recentemente no Litoral Norte de São Paulo, ou na região metropolitana de Recife em maio de 2021, ou ainda no Sul da Bahia em dezembro de 2021. E acrescentam: “O Brasil urbano continua sendo construído para um clima que não existe mais e que não voltará a existir. … As principais vítimas desses desastres são pobres, pretos, pardos e indígenas que vivem em áreas urbanas.”

O tempo e a natureza são implacáveis.

Enquanto sociedade, não é possível mais admitir que tragédias como esta do Litoral Norte de São Paulo ocorram mais mais uma vez. Entra ano sai ano, as notícias são as mesmas. É preciso sair desse estado de letargia em que se normaliza a morte de pessoas, sobretudo pobres, vítimas da ignorância de todos sobre os desafios contemporâneos.

O letramento climático é urgente!

Somente a partir da tomada de consciência do tamanho do problema climático, é que a sociedade brasileira poderá definir medidas para mitigar e se proteger de eventos extremos como esse que assolou o litoral norte paulistano.

A Fauna Projetos se apoia em conhecimento científico e na experiência de sua equipe e de seus colaboradores para desenvolver projetos e propostas que permitam que as pessoas possam viver em áreas urbanas ou no campo, produzindo e criando de forma sustentável. Sustentabilidade é um direito de todos e não um luxo para alguns.

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